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MMXIX   

por Luisa Dalgalarrondo

 

   É impossível enterrar a História por completo. A História pode ser escondida, esquecida, adulterada, mas enterrá-la é inútil. Sempre haverá criaturas emergindo da terra, das tumbas, das paredes ou dos livros. Sempre haverá seres a atravessar os tempos, que ressuscitam e se alimentam de nova vida.

É no contexto em que nos percebemos lidando com monstros que já deveriam ser superados aparecendo para nos assombrar que surge O Tremor Magnífico. É na constatação de que é impossível superá-los por completo que se desenvolve esta peça.

   Carolina Bianchi manifesta neste novo trabalho um desejo em interferir na linha do tempo, mergulhar neste ciclo interminável de massacres e subverter as nossas heranças históricas macabras através de novos pactos poéticos e eróticos, mas deixa claro que não pretende ser uma heroína: ela não vai nos salvar, não há nem solução nem conclusão possíveis - “não há qualquer escapatória porque estamos todos caindo”. Não seria honesto oferecer uma solução, e tampouco seria colocar-nos do “lado bom” da História. Bianchi vai na direção de maldades muito antigas, mas não assinala qual é o seu rosto. Depois de conviver com fantasmas, vampiros e bruxas, nos pergunta: “quem é o monstro afinal?”

   Figuras antagônicas da História, como a do colonizador e a do colonizado, constituem simbioticamente nossos corpos. Nosso imaginário e nossa História são feitos dessa mesma matéria. Como ignorar que a língua em que abominamos a colonização é a língua portuguesa? Como lidar com o impasse de emocionar-se com um sarcófago em um museu  e revoltar-se contra o saqueio de culturas?

   Somos nós mesmos museus vivos, corpos saturados de História através dos quais não há possibilidade de elegermos só o que nos interessa de forma acrítica: a cultura europeia não existe apesar da colonização, do capitalismo, do racismo e da misoginia, mas está fundada sobre esses alicerces. A relação com a História apresentada em O Tremor Magnífico é determinada então por um aspecto sadomasoquista de rejeição a algo que nos constitui e de afeto por algo que nos aniquila.

   Se a língua em que falamos é a do colonizador e se a própria forma como nosso raciocínio se estrutura pertence a lógicas hierárquicas,  Bianchi manifesta o seu desejo por falar em outras línguas, com outras vozes, comunicar-se de outras maneiras. Há uma busca constante por uma outra linguagem, uma outra lógica que possa fazer surgir sentidos subversivos à ordem, que permita outras formas de relação entre mulheres e homens, entre a natureza e a civilização, entre o visível e o misterioso. É a revelação de uma paixão que a artista tem justamente pela linguagem, pelas suas possibilidades, mas principalmente pela sua incapacidade intrínseca de dar conta de tudo. Em uma fricção constante entre uma teatralidade exacerbada e uma performatividade radical, Bianchi parece sempre estar falando de um assunto perseguindo outro.

   Se O Tremor Magnífico não oferece uma solução, um ideal no qual se agarrar e um caminho para uma nova realidade, tampouco está submergido em um pessimismo radical. Através do humor paródico característico de Bianchi, bem como da doçura prometida pela diretora, são apontadas possibilidades de novos pactos capazes de interferir no tecido histórico e desestabilizar a ordem capitalista patriarcal. Esses pactos, muitas vezes sexuais, se caracterizam por práticas desenvolvidas pela artista ao longo dos anos, e abarcam tentativas bastante particulares: levitar facas, transar com fantasmas, conjurar imagens, comunicar-se telepaticamente, ser possuído e possuir o espaço e, sobretudo, aprender a língua do diabo.

   São práticas imaginativas que vão contra ideais de eficiência ou noções de linearidade, e propõe investigar lógicas inusitadas através do corpo dos performers. No entanto, em seus trabalhos, Bianchi não se utiliza da imaginação como simples ferramenta para atingir um efeito, imaginar não é o meio: materializar a sua imaginação no espaço e no corpo dos performers é o fim. Se é que há fim.

   O Tremor Magnífico são pessoas tentando escutar o som de placas tectônicas e sentir o movimento do sangue dentro do corpo.  O Tremor Magnífico são pessoas que sentem seus órgãos desconcertados cada vez que escutam a palavra “historicamente”. O Tremor Magnífico é também uma declaração de amor pela imaginação. E o amor e a imaginação, tal qual a História, não são sempre belos.

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